XV
Quando se fala que o preço que se paga às vezes é alto demais ao se tentar dar o passo maior do que a perna, eu até concordo. Mas venhamos e convenhamos: será que quem vive, como uma predestinação, em meio a turbulências familiares sob carência de amor e regado a fartura de aspereza sentimental e espancamentos constantes, é capaz de saber falar de amor, conto de fadas e nota 10,0 na escola do começo ao fim do ano?
Hoje vou contar a história de um garotinho
chamado Omar José, que trocando a ordem das letras do seu primeiro nome, temos
a palavra mais importante do mundo: Amor.
Chamava-se Omar. Sem o H, como de costume.
Sua mãe lhe chamava por um dengo. Se a memória não me falha, adjetivava-o de
"meu guri" e as vezes de "meu negro". Era bonito vê-la
chamá-lo assim. Via-se no rosto de dona Albertina um brilho todo especial ao
referir-se ao filho de 13 anos de idade, aja vista, tinha consigo o peso da
labuta diária, que por sua vez, lhe forçava a viver na distância para lhe
oferecer uma coisa melhor, além das que o estudo lhe pudesse
proporcionar.
Albertina Felisberta de Alcântara e Silva
era uma preta trabalhadora. Casara-se muito cedo. Separou-se. Casou novamente.
Deu a luz Omar Felisberto de Alcântara Santos. Seu pai, um beberrão
profissional, chamava-se José Maria dos Santos. Bebia uns dez copos de cachaça
por dia, e achado pouco, mendigava um copo ou dois de cerveja, que segundo ele,
era para "lavar". A História de "meu negro" começou no
começo do século XXI, e como tantas histórias que conhecemos através de jornais
e televisão, terminou precocemente, aos rasos treze anos de idade, sonhando em
ser jogador de Flamengo, seu time de coração.
O Guri de dona Albertina cresceu em região de
periferia, em zona suburbana, cuja vizinhança sofria com a falta de emprego,
iluminação, saneamento básico, frio, pois o morro era o mais alto da cidade, e
principalmente, fome. A escola que atendia aos moradores daquela comunidade era
um tanto quando humilde, mas com esforços da equipe gestora, diminuía, no meu
ver, dez a vinte por cento alguma coisa que acentuava a peleja da comunidade.
Os sopões nas sextas, o feijão do sábado e o ensopado do domingo representava
uma saída de emergência para aquele povo. Da segunda para a sexta, ao menos as
crianças faziam pelo menos uma refeição na escola. Isso significava certo
alívio para as mães e os pais de família do morro da consolação de uma cidade
da zona metropolitana da Bahia. Sabe Deus o sufoco que toda aquela gente humilde passava. Às vezes, com ou sem
intenção, "meu negro" gritava para sua professora Inês:
___ Cadê a minha infância, titia?
...
Ela, como se derretia com tudo, chorava
feito criança e ia se esconder na sala da direção para o pequeno Omar não vê-la
chorar. Mas quando ela voltava mais consolada, ele repetia e não lhe dava
escolha...
...
___ Cadê a minha infância, titia?
___ Estar aqui, Omar! Não só a sua
infância, mas seu futuro também.
___ E minha mãe? Cadê ela?
___ Foi trabalhar. No fim do mês ela vem te
visitar e te trazer aquele carro bonito que você lhe pediu para brincar...
...
Omar tinha um olhar ágio. Parecia as vezes
estar alerta até a uma mosca quando sobrevoava sua face. Quando o horário da
sua aula acabava, um pânico disfarçado se instalava no rosto de "meu
negro" como se ele não quisesse voltar para sua casa. Temia encontrar José
Maria, com duas na cabeça e mais oito a espera. Gostava de ficar perambulando
pelas calçadas do morro, jogando ximbra e pedras nas casas dos outros. Muitas
vezes, quando jogava seixos nos terraços nas casas da vizinhança em pleno meio
dia, arrodeava pelos becos para entrar pela porta da cozinha, e roubar dos
pratos pés de galinha, pedaços de carnes de charque e um punhado de farinha.
Entrava e saía em uma carreira só. Os cachorros, como já eram acostumados com
ele, nem se coçavam. Pareciam rirem da situação...
___ Não faça isso não Omarzinho! Peça que
eu lhe dou menino. Quando sua mãe voltar de Porto Seguro vou contar tudo a
ela para ela lhe aplicar corrigenda.
...
Nunca dava tempo dona Albertina chegar
para tomar providência da situação. José Maria como sempre, resolvia a sua
maneira.
___ Vou quebrar-lhe o espinhaço seu
infeliz de porta! É isso mesmo! É um infeliz de porta! Olha o que ele fez na
porta da casa de dona Josefina. Vou ter que mandar concertar. Mas ele me paga.
Olha aqui Juvenal, o que eu tenho pra ele. Estar vendo esse porrete de
sucupira? Vou mostrar a ele e vou mandar ele escolher. Ou o porrete ou essa
tabica de araçá. Eu prefiro a tabica, pois da pra ver o cabra se urinar mesmo
antes de sentir a queimadura.
...
Nessas horas, o pequeno Omar sempre ficava
por perto, perambulando, escutando conversa. Logo, se tremia de medo. O medo
era tanto que já se urinava todo. Por isso, os colegas de arruado e de escola o
apelidaram de "boneco-mijão". Ele ficava tão furioso que sempre se
vingava. Comprou um estilingue para mostrar como era que se resolvia problema
de homem. Quando pensavam que não, surgia uma pedra nas canelas. Eles nunca
descobriam quem as lançava. Omar só deixava para agir na calada da noite,
quando os garotos estavam jogando bola ou brincando de toca. Ele não errava
uma. Desde cedo o moleque tinha uma mira de gente grande...
Quando dona Josefina reclamou com
"meu negro" daquela vez, o pequeno sujeito imaginava mil e uma coisas
e as vezes de maneira inocente, questionava o seu destino. A indagação que
fazia à sua professora vinha à tona sempre que passava e fazia os outros
passarem por mau bocado...
___ "Cadê a minha infância,
titia?"
...
Aquela indagação matava a professora e as
demais pessoas que lhe ouvia. Em outras palavras, Omar queria dizer que não
tinha infância, mesmo tendo escola, merenda, professores e pessoas que o
gostavam muito.
A infância de Omar foi como o jogo do
bicho: Nunca se sabia o que iria dar. E a cada mês, quando sua mãe chegava,
carinhos choviam para o menino de pai desnaturado e agressivo. Mas como diz o
adágio "Alegria de pobre dura pouco", a visita não durava mais de um
dia. Na segunda-feira dona Albertina, uma baiana original, de qualidade,
honesta e de bom coração, tinha que retornar ao trabalho e deixar seu pequeno,
que já estava crescendo com quase todos os maus costumes do mundo. Mas como
existem pessoas que são criadas feito batata ou como quem se toma conta
de animais que comem capim, amarrando pela manhã e indo buscar a tarde,
cumpre-me dizer que mesmo sem querer, o garoto colocou na cabeça de querer dar
o passo maior do que a perna, sem saber que quem faz isso uma hora tropeça e
cai.
A história de meu negro foi trágica.
Caberiam muitas páginas de narrativas. Foi um sofredor de carteirinha. Longe de
uma mãe que o amava e perto de um pai que o espancava, foi crescendo e se
envolvendo com coisas muito diferentes com as coisas que se espera para um
pequeno de 13 anos. Aprendeu a gostar de filmes das máfias, mas só passou a
assistir quando roubou um aparelho de DVD de um velho que morreu de infarto,
sua casa dava com os fundos para a sua. Ainda conseguiu uma caixa cheia de
discos de filmes, um revolver calibre 38 e quase 50 projeteis novos. Depois se
ouviu falar que o velho era articulador de um grupo de assaltantes de carros e
de furtos médios. Aquele dia mudou a vida de "meu negro", e como em
quase todos os casos, o fim de uma história como aquela não deixou de ser
trágico. Foi assassinado aos 13 anos. Sonhando em ser jogador. Mas àquelas
alturas, não havia possibilidade. Primeiro porque estava enfiado em consumo de
drogas. se traficava eu não sei. Segundo porque só sonhava, mesmo. E
sonhava dormindo, que era pior. Deve-se sonhar acordado senão não se realizará
o sonho.
Lembro que quando "meu negro"
foi assassinado, sua mãe não durou três meses para ir para a tamarineira. e o
Pai passou a beber 20 copos de cachaça por dia. A comunidade logo o esqueceu,
menos sua professora, que ainda hoje lamenta e chora sua morte.
___ Pobre do Omar. Nasceu e morreu regado
em sofrimento. Que sina, meu Deus! Bem que ele me falava, seu Bezerra:
"Cadê a minha infância, titia?" Deus te receba Omar, "meu
guri" ou "meu negro". E ajam Omar, "meu guri" ou "meu
negro" espalhados por aí sem que ninguém os enxerguem. Se fossem cegos
queriam enxergar, Bezerra!
___ Verdade, dona Inês.
___ Morreu com 13 anos, foi dona
professora?
___ Foi, seu Firmino...
___ Novo...
___ Novo? Demais...
...
"O desfeche dessa história se deu em
2013. Sabe Deus quantas histórias dessas já não foram escritas”.
Fábio de Carvalho
[Maranhão]
09/04/2017, 13h13min -
14h13min - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]
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