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domingo, 30 de abril de 2017

Uma reflexão sobre Fé e religião / Fábio de Carvalho [Maranhão]

XVIII

Uma das coisas que costumo dizer, é que o que me sustenta, além de Deus, é claro, é a minha Fé. Mas não me refiro apenas a minha fé em Deus no sentido da devoção e adoração maior. Refiro-me a pontos de vistas que defendo, mas é claro, sem o radicalismo dos que usam venda nos olhos. Esses meus pontos de vistas referem-se a minha maneira de enxergar, analisar e me posicionar com relação à doutrinação, dogmatismos e de certa maneira, ao adestramento de pessoas em face de doutrinas que defendem. Eu tenho dito que, mesmo com tantas igrejas espalhadas por aí, o mundo ainda continua desmantelado. Mas certamente alguém que usa venda nos olhos, vai saltar de um lado e vai dizer: 

___ “Mas a igreja de Deus é “esta” ou “esta”...”.

Isso é normal quando vemos que na sua quase totalidade, os ditos fiéis, escutam, decoram, reproduzem e  defendem a todo custo o que seu "pastor" lhe doutrina. Não vejo problema algum em quem tem religião, defendê-la, até por que existe em meio a tudo isso, uma profissão de fé que deve ser respeitada. O que eu não compreendo e me deixa perplexo é a desunião e concorrência entre os fanáticos religiosos, que de cabo a rabo, desde membros comuns até os líderes maiores, existe um sentimento de concorrência e revanchismo que muitas vezes, desconstrói aquilo que o Cristo deixou como exemplo: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei". Deve ter sido "também" pelas perversidades em nome das religiões cristãs, que o filósofo alemão Friedrich Nietzsche teorisou que "na verdade, o único cristão morreu na cruz".  Mas diante de tudo isso, eu fico a me perguntar se as pessoas concordam com a frase de Machado de Assis quando ele escreveu na sua obra prima Dom Casmurro, obra esta que me abriu os olhos para o mundo da leitura quando eu ainda não passava da minha adolescência que "o mundo também é igreja para os bons". Eu creio que sim e não me constranjo de maneira nenhuma em afirmar isso. Se fosse o contrário, não existiria tanta injustiça dentro e fora das igrejas, e ao mesmo tempo, como um paradoxo, não existiriam tantas boas ações fora e dentro das igrejas. O que eu quero dizer é que tudo é relativo. Quando Nietzsche escreveu a menção supracitada, no meu entendimento, ele não quis condenar as religiões como uma espécie de maldição à sociedade. Existe nesse fragmento de Vontade de Poder, uma lógica acentuada e elevada coerência, pois quando o chamado "Anticristo" pela Igreja Católica escreve em uma das suas obras de maior potencial a dita reflexão, faz criticas ao comportamento, às ações, a hipocrisia, ao salafrarismo da homanidade a frente das instituições religiosas e também fora delas. 

Trazendo uma reflexão atual, observo que muitos que se dizem cristãos, são a favor da pena de morte, do apedrejamento moral, da paga com a mesma moeda, como na antiga Lei de TaliãoEu não creio que se corrige punindo nem que se deve premiar por uma boa ação. Uma coisa é uma boa ação, outra é a execução de uma obrigação. Muitos não distinguem. Assim ocorre em muitas práticas doutrinárias e em publicações de discursos infundados e sem base ideológica coerente. Enquanto uns rezam ou oram nas noites semanais e em fins de semana, estes mesmos praticam o racismo embutido, não são caridosos e preocupam-se com a vida do vizinho, de Deus e do mundo. Quantos não questionarão estas linhas dizendo que "Ninguém é perfeito, pois até os apóstolos não foram"? Sei que muitos dos que lerem esta reflexão sobre a Fé e a religião desejarão minha cabeça como a Igreja desejou a de muitos ditos "hereges" durante a era medieval, como muitos sonharam com a do criador de Zaratustra, a de Galileu Galilei, Joana D'Arc e tantos e tantas mais. Por esse motivo, eu desejo afirmar ainda, que o comércio em nome da fé cresce tanto, que é indiferente para certas igrejas, o sujeito que desejar frequentá-la sem contribuir de certa forma com o vintém para não sei quem. Em "brincadeiras" como essas, igrejas medievais foram construídas com paredes de ouro, e em outras, em fases do Liberalismo Econômico em detrimento do Mercantilismo evocando Adam Smith, Marx Weber escreve sobre a Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo nos dizendo que a ética queria dizer outra coisa, deixando claro que os verdadeiros objetivos da Reforma Protestante, além é claro de criar uma concorrente para a Igreja Romana, vislumbravam o acúmulo de capital através da produção de excedentes, atrelando-se aos burgueses, ratazanas dos esgotos ascendidos ao topo da pirâmide até hoje, fase superior do Capitalismo, o chamado Imperialismo. 

Questiono-me se as pessoas não estudam História por preguiça ou por medo. Questiono-me ainda se quando neste momento de vulnerabilidade política no Brasil, a nação procurou refletir quando a disciplina de História foi colocada na berlinda, de maneira subalterna no currículo escolar, como se na maioria das situações de perfis dos estudantes, houvesse maturidade em refletir acerca da importância do Ensino de História. 

Será que, quando compôs Renato Russo, "assim é bem mais fácil nos controlar", as pessoas analisaram e analisam as metáforas? Mas o que é uma metáfora para uma nação que anda manca e sangrando em Educação e Saúde, Segurança e Corrupção? Quando o astro do Rock brasiliense esmurra com a frase "assim é bem mais fácil nos controlar" ele não fala apenas como se a crítica fosse para os governantes. São para os empresários, banqueiros, líderes religiosos que enxergam antes de qualquer coisa, um cordeiro a sua frente pronto para ser adestrado feito um cão sarnento e faminto. É em uma hora como esta, que o cão sarnento e faminto vira um peixe, e os religiosos hipócritas (mas que a carapuça sirva para as cabeças adequadas), não viram "pescadores de homens", transformam-se em adestradores e lavadores de cérebros, para depois, transformarem-se em caixas de banco, economistas do capital, membros do grupo Boi, Bala e Bíblia e assim por diante.



Enquanto isso, eu prefiro a minha Fé, em Deus e nos deuses que habita em cada um e em cada uma, em nome da caridade, das boas ações, e acima de tudo, da vergonha que honra o nome e serve de exemplo para as gerações futuras...

E vão se cuidando, pois se for morno, a vomitada é certa... ( (APOCALIPSE 3:16)

Foto: Fábio de Carvalho Maranhão (Artes Visuais)_Acervo Pessoal/2016

Fábio de Carvalho [Maranhão]
30/04/2017, 10h44min – 12h03min - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]Descrição: clique aqui

domingo, 23 de abril de 2017

⚔️Viva São Jorge, Salve Ogum ⚔️ / Fábio de Carvalho [Maranhão]

XVII


A primeira vez que ouvi falar em São Jorge eu ainda estava na barriga da minha mãe. Mas o que eu ouvi naquela quarta-feira do ano de 1983, já perto do meu nascimento, foram coisas do tipo: "Olha para a lua que você verá São Jorge lá". Não dei muita importância, primeiro, porque não havia como dar importância a uma conversa daquela, que para mim, mais parecia sem pé nem cabeça. Imaginava eu de dentro da barriga: 

___ Olhar para a lua e ver um Santo? De onde tiraram isso? 

Imagem da Internet
Mas a conversa sempre fluía e São Jorge guerreiro estava nas orações da minha tia e do meu tio, e nesse meio tempo, quando eu já havia completado meus cinco anos, encontrei dentro da Bíblia da minha Tia-Avó e Madrinha, um santinho com aquela que chamo de principal oração de São Jorge. Não vou citá-la aqui, pois tomaria muito tempo. Ademais, quando fazemos isto em uma prosa, às vezes enfadamos o nosso leitor, dizia-me um antigo poeta vindo da Alemanha nos fins dos anos 90 do século passado. Aquele santinho me despertou tanta curiosidade, que o enfiei no bolso direito do meu calçãozinho azul, e de lá da casa da minha tia, pistei para a casa dos meus pais. Eu não estava só. Uma senhora que trabalhou lá na casa que me revelara São Jorge, levou-me. Cheguei ansioso com o santinho no bolso, e de pronto, entrei no meu quarto. Um fato muito interessante para mim, é que, com aquela idade, cinco anos apenas, eu já sabia ler. Agradeço às minhas professoras, pois sem elas talvez eu não tivesse realizado essa habilidade tão precocemente. Dione, Telma e Dona Bezinha Campos foram às anfitriãs deste grande feito. 

Imagem da Internet
Pois bem, como eu estava falando, entrei em meu quarto e deitado de "papo" para baixo, comecei a ler aquela magnífica oração. Após cada verso eu imaginava mil coisas. Se na época eu conhecesse Shakespeare, eu seria capaz de apostar que essa oração era da sua autoria. Jorge da Capadócia me despertou fé e confiança a partir da sua história e dos versos da sua oração

Anos mais tarde, creio que no início do século XXI, mais ou menos ano 2001, conheci de maneira mais aprofundada a história das religiões, e prestes a entrar no curso de História, sentia-me na obrigação de ler sobre temas que na maioria das vezes, as pessoas acham polêmicos. Iniciei uma pesquisa sobre as religiões de Matriz Africana e com elementos delas, nascidas no Brasil, como é o caso da Umbanda. Deparei-me com um mundo de descobertas tão fantástico, um sincretismo real e um campo de paz tão harmonioso, que a partir daquele tempo, agarei-me em sincronia com as religiões que, porventura, pudessem dialogar com estas, que diariamente são perseguidas e discriminadas. 

Imagem da Internet
Conheci Ogum, o Orixá da guerra, da demanda e da luta. Essas três características me serviram de inspiração para que, através da reflexão de cada uma, eu pudesse trilhar a minha vida, guerreando com as dificuldades, e porque não dizer, lutando contra as demandas negativas que por vezes, a vida nos coloca no meio do caminho. Descobri, contudo, que São Jorge era (e é) Ogum. Essa descoberta me aproximou tanto da Umbanda e do Candomblé, que busquei e busco a cada dia, compreender e ritualizar afazeres e obrigações relacionadas a crença ritualística dessas religiões tão bonitas e importantes para o ceio cultural da espiritualidade humana.

Hoje, tantos anos se passaram, e eu contando quase 34 anos de idade, pratico minha fé de forma livre, consciente e respeitosa. Abrange-me muitos elementos de várias crenças, e me sinto feliz por isso. Muitas orações, muita fé e muitas histórias me competem contar e vivenciar. Hoje é dia de São Jorge, mas todos os dias ele nos acompanha. Viva Pai Ogum! Salve Jorge da Capadócia!

"A minha história eu não deixo que contem. Eu não apenas vivo quanto faço jus a minha existência",


Fábio de Carvalho [Maranhão]
23/04/2017, 12h46min – 13h13min - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]Descrição: clique aqui
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domingo, 16 de abril de 2017

Moça Velha e Rapaz Novo / Fábio de Carvalho [Maranhão]

XVI

Há pouco mais de dois anos, quando em viagem com meu compadre Alexandre Camilo, seu filho Rikelme e seu compadre Gonzaga à capital pernambucana, presenciei uma cena engraçada com o penúltimo amigo citado. Não sei se no momento, o jovem recém-chegado à adolescência teve vontade de fato de rir ou de chorar quando passou por aquela situação não tão comum, pois o sujeito, mesmo sem querer, só tinha seus "talvez" quinze anos, mas como às vezes as aparências enganam, fomos convidados naturalmente a sorrir e sem esforço, perpetuar no legado do filho do meu compadre, os efeitos estéticos da cantada que ele recebera de uma jovem com seus mais de sessenta anos. Falo jovem porque sua alma era juvenil.

Após visitarmos algumas lojas na Rua da Concórdia e entorno, nos dirigimos a um setor onde havia várias casas de optometria, com o intuito do meu compadre renovar seus exames oculares e trocar seu óculos, que segundo ele, já estava em boa hora de trocar. Chegamos a um prédio, cujo mesmo não me recordo a localização exata, e subimos uns andares. Lá, conversamos, tomamos café, olhamos armações de todos os tipos. Perdemos-nos do tempo. O ar condicionado estava contribuindo para uma acomodação formidável. O calor já não existia. A fome fora suspensa. Aquele andar nos deu a oportunidade de concluir que em um trajeto tão pequeno, coisas inesperadas pudessem acontecer. 

Lembro que quando entramos, na segunda cadeira do banco de espera, estava sentada uma senhora, cuja aparência não negava sua vaidade. Estava vestindo vermelho florido, Sandália rasteira e óculos escuros estilo coração. O batom era violeta. Anéis, pulseiras e cordão de ouro não lhe faltavam. A bolsa que carregava, pelo jeito, não faltava nada. Ela passou um rabo de olho no amigo citado, que quem quase caía foi outro senhor que acabara de entrar. 

___ Vai vê foi "olhado", resmungou Gonzaga no meu ouvido.

Dali em diante, Rikelme não teve mais sossego. Para onde ele ia a senhora, chamada Astrogilda, pois depois eu descobri quando o senhor da ótica a chamou para entregar-lhe o óculos que estava pronto. Mas em um piscado de olhos ela desapareceu. Logo vi no rosto do amigo que um alivio lhe tomou.  Dali em diante não falamos sobre isso. 

Terminada a consulta do meu compadre nos dirigimos à escadaria e fomos descendo distraídos. Quase na chegada do primeiro andar, uma mulher surgiu de súbito, e após corrigir todos nós, fixou o olhar em Rikelme, e cravando-lhe a mão direita no braço, bem na altura do músculo central, pergunta-lhe:

___ Posso segurar no seu braço para descer a escadaria?

Com a fisionomia meio que desconfiada ele responde:

___ Pode sim!

Gonzaga, meu compadre Alexandre Camilo olharam um para o outro em silêncio absoluto e em seguida olharam para mim. Ninguém falou. Descemos todos em silêncio. Rikelme perdera a língua momentaneamente. Hesitou em proferir qualquer palavra. Perto do último degrau, quase no térreo, dona Astrogilda quase sem fôlego vocifera:

___ Muito obrigado Rikelme! 

Automaticamente, resmunga um "de nada" bem vago, e achando que havia acabado ali o inesperado daquele dia, escuta o desfecho proferido pela madame em tom malicioso e repleto de segundas intenções:

___ FOI MUITO MELHOR PEGAR NESSE BRAÇO CARNUDO DO QUE NAQUELE FERRO SEM ALMA!

O ferro que ela se referiu foi o ferro do corrimão. Gonzaga e meu compadre, discretos, no momento fizeram que não ouviram, enquanto eu com o olhar fixo para a outra mão de dona Astrogilda, percebi quando ela enfiou no bolso de Rikelme seu cartão de visita. Nesse momento eu virei as costas. Mas de ouvido atento, gravei as últimas palavras proferidas para meu amigo de apenas 15 anos na época...

___ Aí tem meu Whatsapp...

Eu nunca contei esse detalhe a meu compadre Alexandre Camilo nem a Gonzaga. Quem vai gostar de saber vai ser seu tio Bilú, irmão do seu pai. Desde o dia em que ele lhe contou parte dessa história Rikelme não teve mais sossego. Bilú não perde tempo...


Fábio de Carvalho [Maranhão] 16/04/2017, - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]Descrição: clique aqui

domingo, 9 de abril de 2017

Omar José ou O Guri dos Outros: uma história de tragédia / Fábio de Carvalho [Maranhão]


XV

Quando se fala que o preço que se paga às vezes é alto demais ao se tentar dar o passo maior do que a perna, eu até concordo. Mas venhamos e convenhamos: será que quem vive, como uma predestinação, em meio a turbulências familiares sob carência de amor e regado a fartura de aspereza sentimental e espancamentos constantes, é capaz de saber falar de amor, conto de fadas e nota 10,0 na escola do começo ao fim do ano? 

Hoje vou contar a história de um garotinho chamado Omar José, que trocando a ordem das letras do seu primeiro nome, temos a palavra mais importante do mundo: Amor.

Chamava-se Omar. Sem o H, como de costume. Sua mãe lhe chamava por um dengo. Se a memória não me falha, adjetivava-o de "meu guri" e as vezes de "meu negro". Era bonito vê-la chamá-lo assim. Via-se no rosto de dona Albertina um brilho todo especial ao referir-se ao filho de 13 anos de idade, aja vista, tinha consigo o peso da labuta diária, que por sua vez, lhe forçava a viver na distância para lhe oferecer uma coisa melhor, além das que o estudo lhe pudesse proporcionar. 

Albertina Felisberta de Alcântara e Silva era uma preta trabalhadora. Casara-se muito cedo. Separou-se. Casou novamente. Deu a luz Omar Felisberto de Alcântara Santos. Seu pai, um beberrão profissional, chamava-se José Maria dos Santos. Bebia uns dez copos de cachaça por dia, e achado pouco, mendigava um copo ou dois de cerveja, que segundo ele, era para "lavar". A História de "meu negro" começou no começo do século XXI, e como tantas histórias que conhecemos através de jornais e televisão, terminou precocemente, aos rasos treze anos de idade, sonhando em ser jogador de Flamengo, seu time de coração.

O Guri de dona Albertina cresceu em região de periferia, em zona suburbana, cuja vizinhança sofria com a falta de emprego, iluminação, saneamento básico, frio, pois o morro era o mais alto da cidade, e principalmente, fome. A escola que atendia aos moradores daquela comunidade era um tanto quando humilde, mas com esforços da equipe gestora, diminuía, no meu ver, dez a vinte por cento alguma coisa que acentuava a peleja da comunidade. Os sopões nas sextas, o feijão do sábado e o ensopado do domingo representava uma saída de emergência para aquele povo. Da segunda para a sexta, ao menos as crianças faziam pelo menos uma refeição na escola. Isso significava certo alívio para as mães e os pais de família do morro da consolação de uma cidade da zona metropolitana da Bahia. Sabe Deus o sufoco que toda aquela gente humilde passava. Às vezes, com ou sem intenção, "meu negro" gritava para sua professora Inês:

___ Cadê a minha infância, titia?

...

Ela, como se derretia com tudo, chorava feito criança e ia se esconder na sala da direção para o pequeno Omar não vê-la chorar. Mas quando ela voltava mais consolada, ele repetia e não lhe dava escolha...

...

___ Cadê a minha infância, titia?
___ Estar aqui, Omar! Não só a sua infância, mas seu futuro também.
___ E minha mãe? Cadê ela?
___ Foi trabalhar. No fim do mês ela vem te visitar e te trazer aquele carro bonito que você lhe pediu para brincar...

...

Omar tinha um olhar ágio. Parecia as vezes estar alerta até a uma mosca quando sobrevoava sua face. Quando o horário da sua aula acabava, um pânico disfarçado se instalava no rosto de "meu negro" como se ele não quisesse voltar para sua casa. Temia encontrar José Maria, com duas na cabeça e mais oito a espera. Gostava de ficar perambulando pelas calçadas do morro, jogando ximbra e pedras nas casas dos outros. Muitas vezes, quando jogava seixos nos terraços nas casas da vizinhança em pleno meio dia, arrodeava pelos becos para entrar pela porta da cozinha, e roubar dos pratos pés de galinha, pedaços de carnes de charque e um punhado de farinha. Entrava e saía em uma carreira só. Os cachorros, como já eram acostumados com ele, nem se coçavam. Pareciam rirem da situação...

___ Não faça isso não Omarzinho! Peça que eu lhe dou menino. Quando sua mãe voltar de Porto Seguro vou contar tudo a  ela para ela lhe aplicar corrigenda.

...

Nunca dava tempo dona Albertina chegar para tomar providência da situação. José Maria como sempre, resolvia a sua maneira. 

___ Vou quebrar-lhe o espinhaço seu infeliz de porta! É isso mesmo! É um infeliz de porta! Olha o que ele fez na porta da casa de dona Josefina. Vou ter que mandar concertar. Mas ele me paga. Olha aqui Juvenal, o que eu tenho pra ele. Estar vendo esse porrete de sucupira? Vou mostrar a ele e vou mandar ele escolher. Ou o porrete ou essa tabica de araçá. Eu prefiro a tabica, pois da pra ver o cabra se urinar mesmo antes de sentir a queimadura. 

...

Nessas horas, o pequeno Omar sempre ficava por perto, perambulando, escutando conversa. Logo, se tremia de medo. O medo era tanto que já se urinava todo. Por isso, os colegas de arruado e de escola o apelidaram de "boneco-mijão". Ele ficava tão furioso que sempre se vingava. Comprou um estilingue para mostrar como era que se resolvia problema de homem. Quando pensavam que não, surgia uma pedra nas canelas. Eles nunca descobriam quem as lançava. Omar só deixava para agir na calada da noite, quando os garotos estavam jogando bola ou brincando de toca. Ele não errava uma. Desde cedo o moleque tinha uma mira de gente grande...

Quando dona Josefina reclamou com "meu negro" daquela vez, o pequeno sujeito imaginava mil e uma coisas e as vezes de maneira inocente, questionava o seu destino. A indagação que fazia à sua professora vinha à tona sempre que passava e fazia os outros passarem por mau bocado...

___ "Cadê a minha infância, titia?"

...

Aquela indagação matava a professora e as demais pessoas que lhe ouvia. Em outras palavras, Omar queria dizer que não tinha infância, mesmo tendo escola, merenda, professores e pessoas que o gostavam muito. 

A infância de Omar foi como o jogo do bicho: Nunca se sabia o que iria dar. E a cada mês, quando sua mãe chegava, carinhos choviam para o menino de pai desnaturado e agressivo. Mas como diz o adágio "Alegria de pobre dura pouco", a visita não durava mais de um dia. Na segunda-feira dona Albertina, uma baiana original, de qualidade, honesta e de bom coração, tinha que retornar ao trabalho e deixar seu pequeno, que já estava crescendo com quase todos os maus costumes do mundo. Mas como existem pessoas que são criadas feito batata ou como quem se  toma conta de animais que comem capim, amarrando pela manhã e indo buscar a tarde, cumpre-me dizer que mesmo sem querer, o garoto colocou na cabeça de querer dar o passo maior do que a perna, sem saber que quem faz isso uma hora tropeça e cai.

A história de meu negro foi trágica. Caberiam muitas páginas de narrativas. Foi um sofredor de carteirinha. Longe de uma mãe que o amava e perto de um pai que o espancava, foi crescendo e se envolvendo com coisas muito diferentes com as coisas que se espera para um pequeno de 13 anos. Aprendeu a gostar de filmes das máfias, mas só passou a assistir quando roubou um aparelho de DVD de um velho que morreu de infarto, sua casa dava com os fundos para a sua. Ainda conseguiu uma caixa cheia de discos de filmes, um revolver calibre 38 e quase 50 projeteis novos. Depois se ouviu falar que o velho era articulador de um grupo de assaltantes de carros e de furtos médios. Aquele dia mudou a vida de "meu negro", e como em quase todos os casos, o fim de uma história como aquela não deixou de ser trágico. Foi assassinado aos 13 anos. Sonhando em ser jogador. Mas àquelas alturas, não havia possibilidade. Primeiro porque estava enfiado em consumo de drogas.  se traficava eu não sei. Segundo porque só sonhava, mesmo. E sonhava dormindo, que era pior. Deve-se sonhar acordado senão não se realizará o sonho. 

Lembro que quando "meu negro" foi assassinado, sua mãe não durou três meses para ir para a tamarineira. e o Pai passou a beber 20 copos de cachaça por dia. A comunidade logo o esqueceu, menos sua professora, que ainda hoje lamenta e chora sua morte. 

___ Pobre do Omar. Nasceu e morreu regado em sofrimento. Que sina, meu Deus! Bem que ele me falava, seu Bezerra: "Cadê a minha infância, titia?" Deus te receba Omar, "meu guri" ou "meu negro". E ajam Omar, "meu guri" ou "meu negro" espalhados por aí sem que ninguém os enxerguem. Se fossem cegos queriam enxergar, Bezerra!
___ Verdade, dona Inês.
___ Morreu com 13 anos, foi dona professora?
___ Foi, seu Firmino...
___ Novo...
___ Novo? Demais...
...

"O desfeche dessa história se deu em 2013. Sabe Deus quantas histórias dessas já não foram escritas”.

***

Fábio de Carvalho [Maranhão]
09/04/2017, 13h13min - 14h13min - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]

domingo, 2 de abril de 2017

Desculpa Arranjada: uma crônica meio conto. / Fábio de Carvalho [Maranhão)

XIV

Eu já vi todo tipo de gente e concluí que há gente para tudo, mas que certos detalhes são carregados de uma singularidade tão pertinente que não há como a gente esquecê-los. Além do mais, quando penso que já havia visto de tudo e mais um pouco, me aparece cada figura, que cá para nós, me faz dar boas risadas de uma hora para a outra sem que, até eu mesmo, espere por isso. 

Higino Fonseca de Menezes, um economista aposentado, filho de imigrantes Italianos da primeira safra da Velha República, foi um sujeito que conheci apenas por uma história contada pelo Avô do meu Pai, mas que para chegar aos meus ouvidos, tive papai como narrador nato, onde as alegorias presentes no sotaque interiorano da Paraíba, me fizeram imaginar a história desse sujeito como se eu mesmo houvesse convivido com o tal. Papai nunca contava uma história numa tacada só. Fazia "arrodeios" para chegar ao assunto principal. Lembrava-me um fato aqui, citava outro ali e a história ia se desenhando como um esboço de ficção literária, que por sinal, tenho praticado e aprendido aos poucos a fazer de uns três anos para cá. Ficção não é meu forte, embora eu seja fascinado por literatura dessa linha. Machado de Assis me ensinou muito, mas não posso deixar de citar Victor HugoFlaubertGracilianoGuimarãesClarice LispéctorF. Scott FitzgeralNelson Rodrigues e tantos outros que se eu for citar, passaria o resto da noite apenas fazendo referências. Mas retomando ao assunto, Higino sempre foi bom sujeito. Ao menos foi a conclusão que tirei após ouvir algumas histórias sobre a sua pessoa. Mas o que mais me chamou atenção, foi o fato de que ele, para tudo, arranjava uma desculpa, além, é claro, de sempre se encontrar só, usando sobretudo de cores marrom, cinza, azul jeans ou preto. Gostava de usar chapéu Cury preto ou marrom. Baforava um charuto se vez em quando e era viciado em Henry Miller, mas essa informação eu só obtive com minha tia, irmã de papai, que é especialista em linguística e mestre em Literatura. Esse fato me fez não apenas ler, mas consumir e devorar a obra dessenorte-americano, que por sinal, tem como característica literária, uma mistura de ficção e autobiografia. O Menezes, como papai se referia ao Higino, gostava da boemia. Tragava sempre um Chivas. Era fã dos destilados da Escócia. Certa vez, bêbado, perto dos seus 60 anos de idade, gritou no Centro Histórico de João Pessoa

___"O meu sonho é morrer bêbado em uma fábrica de Chivas!!! Bendito seja o inventor desse néctar!!! Salve o Robert! Robert não! Santo Robert! Vou acender umas velas para ele hoje de frente para uma garrafa como monumento Sagrado!!!"

Lembro que, quando papai me narrou esse fato, sorrimos tanto que até um copo da cerveja deitou sobre a mesa por causa da euforia do momento. Papai emendou com um detalhe curioso sobre essa figura:

___ Menezes era um solitário.
___ Solitário, papai?
___ Sim. Sempre estava só.
___ Ele não tinha amigos?
___ Se tinha eu não sei. Era pouco comunicativo. Bebia só. Fumava só. Dizem até que conversava sozinho. Mas isso é outra coisa. (risos)
___ Imagino o que se passava na cabeça desse sujeito...
___ Ele não tinha família?
___ Até que tinha. Mas...
___ E moravam em João Pessoa?
___ Dizem que não. A conversa que ouvi é que eles residiam em Recife e que também tomavam Wisk adoidados.

Enquanto papai me contava os detalhes sobre Higino, guardei na memória seu perfil de homem solitário e recatado através sua fala "Sempre estava só...". Imaginei: 

"Deve ser por isso que, segundo minha tia, ele sempre evitava as pessoas, recusava convites ou dizia que compareceria aos lugares e nem sinal dele depois. Se fosse hoje, creio que até o telefone ele desligaria. Facebook e Whatsapp nem em sonho. Talvez ele fosse um desiludido ou um extremista revoltado... "

Depois de quase meia hora de conversa, papai me narrou uma prosa que Higino teve com uma senhora de meia idade, chamada Augusta Duarte, viúva há exatos vinte anos e mãe de uma filha, Isabel Duarte de mesma idade da sua viuvez. Dona Augusta era um rabo de saia pretendida a se casar com ele, mas que depois dessa conversa, o apelido de "desculpa arranjada" lhe rendeu até o fim da sua vida, aos longos 85 anos, seis meses e sete dias de idade. Faleceu em um dia 13 não sei de qual mês, mas o dia da semana foi em dia de sábado, exatamente às 13h13min após ter tomado 13 doses de Chivas e ter gritado bem auto o nome de 13 obras preferidas de Henry Miller, acentuando desesperadamente aquela que o consagrou: Trópico de Câncer. Repetiu quase cem vezes o nome desse monumento literário antes de dar o último suspiro. Umas duas ou três vezes dona Augusta soltou que ele tinha perfil avarento, e que talvez, carregasse algum trauma que o fazia ser, segundo suas palavras, como era: "Um estranho".

Em um dos Cafés de João Pessoa, escutaram a narrativa da conversa pela própria dona Augusta proferida para uma tia sua, que já beirava os noventa e cinco anos de idade. Esse acontecimento explica o porquê de o senhor Higino ter levado à eterna alcova, a má fama de "desculpa arranjada". Não sabia ela, que perto da sua mesa, havia uma vizinha sua, de nome não revelado pelo garçom que também não deve aparecer nesta história de forma direta. Logo, a rua estaria cheia da mesma narrativa, impressa e reproduzida em um folheto, com o título da alcunha que sacudiu a cidade em um reboliço só:

___ Tia Zanete, aquele sujeito não tem jeito. Tudo que eu falava ele rebatia. Aja desculpas para uma pessoa só.
___ Como era o nome dele mesmo?
___ Higino. 
___ Pelo nome era feio.
___ Talvez. Mas deixe-me dizer um pedaço da nossa prosa. Vá imaginando.

Passado quase um minuto, dona Augusta Duarte detalhou o desastre do acontecimento 27 anos antes daquela data. 

 ...

___ Bom dia, seu Higino! Que honra lhe encontrar!
___ Honra? E quem é que mais tem honra hoje em dia dona Augusta? Com exceção de algumas senhoras religiosas e outras que perderam a memória, quase todo o resto não tem nem vergonha quanto mais honra!
___ Ao menos me deseje um bom dia. Devolva a gentileza, homem!
___ Devolver? E eu lhe tomei alguma coisa emprestada para lhe devolver dona Augusta!?
___ Nossa! Já vi que o senhor estar armado hoje. O que o senhor tem? Estar de mal com a vida ou o quê?
___ Quer que eu comece pelo começo ou pelo fim?
___ Tanto faz.
___ Primeiro tanto faz não é resposta. Depois não posso estar de mal com a vida, pois vida não é gente. E sobre o que eu tenho, para que a senhora quer saber? Vai mandar assaltantes lá em casa para me roubar, matar ou sequestrar? Armado eu nunca andei. A não ser que esse "armado" que a senhora proferiu queira dizer outra coisa. Se for o que estou pensando, pode tirar o cavalo da chuva, pois acho muito feio mulher oferecida. E qual o motivo de a senhora expressar esse "Nossa!" exclamativo? Que eu saiba, Nossa Senhora estar no céu, se é que há céu. Eu já vi tanta gente morrer e os outros dizerem que foram para o céu, que, sinceramente, aja gente em um lugar só. Será que cabe essa gente toda lá, dona Augusta?
___ O senhor deve estar variando.
___ Agora deu pra me chamar de louco?
___ Não foi isso que eu quis dizer, homem!
___ Homem? Meu nome é Higino Fonseca de Menezes. Pode se dirigir a mim chamando-me por um dos três. Homem é gênero e não nome próprio. Além do mais, prefiro que me chame pelo nome do que pelos sobrenomes.
___ Não acha que estar exagerando, senhor Higino?
___ Estar me chamando de velho? 
___ Não!
___ Então não me chame de senhor, SENHORA!
___ Por Deus, Higino. Pare com tantas ofensas. O que eu quis desde o começo foi lhe tratar bem sendo gentil.
___ A senhora é Cristã?
___ Sou.
___ Então leu a Bíblia?
___ Não completa. O que conheço é o que assisto nas missas, durante as homilias dos padres.
___ Diga-me uma coisa: a senhora sabe que chamar os outros de louco é pecado? Mateus 5,22 foi bem claro.
___ Já lhe disse que minha intenção não foi essa. Quando eu perguntei se o senhor estava variando, foi para chamar sua atenção...
___ Pois bem, escolha melhor as palavras, e da próxima vez, poderemos ter uma conversa mais agradável.
___ Estar bem HIGINO, FONSECA, MENEZES...

...

A narrativa foi se estendendo, enquanto a vizinha de dona Augusta tomava nota de tudo. Pelo perfil descrito pelo garçom, tratava-se de uma jornalista, que por sinal, frequentava diariamente o Café xxxx... A conversa prosseguia enquanto sua tia, já quase transformada em uma garrafa de café, pois já havia tomado quatro xícaras, prestava atenção como ninguém na narrativa da sobrinha...

...


___ ...mas, posso lhe fazer um convite, Higino?
___ Se for decente!
___ Estar insinuando que sou indecente?
___ De modo algum. Foi forma de falar.
___ Venha cá. Sente-se aqui...

Surgiram as desculpas, que de cara, expressava talvez, um receio, um trauma ou até uma aversão a figura feminina da parte do senhor Higino.

___ Não posso!
___ O que há?
___ Estou com problema de coluna. Ainda por cima, estiou com uma violenta crise hoje.
___ Tome um pouco de água. O dia estar muito quente hoje.
___ Estou com infecção urinária. Tenho medo de não conseguir urinar.
___ Então aceite um docinho desses que trago aqui na bolsa. Eu mesma foi quem os fiz.
___ Sou diabético. Só se for para eu morrer mais depressa. Quer me matar?
___ Claro que não, Higino!
___ Então guarde esses doces, dona Augusta!
___ Prove um salgado! Veja-os. Eu também os fiz hoje.
___ Como? Para dar sede? Não vou poder tomar água depois. É melhor deixar como estar. E, além disso, eu sofro de pressão.
___ Sabe o que lhe falta Higino?
___ Depende do ponto de vista!
___ Uma mulher! Case-se! 
___ A senhora acha mesmo?
___ Apaixone-se! Vai lhe fazer bem...
___ Não posso! Sou cardíaco...

(...)

...


Como era esperado, para tudo o sujeito arranjava uma desculpa, e além do mais, era um pessimista de carteirinha.

...

___ Deus lhe proteja, Higino!
___ Há essas horas? E Deus anda com tempo dona Augusta? Ligue agora mesmo no Jornal e assista sobre as mais de 250 mortes, mais de 400 feridas e feridos e ainda mais de 200 desaparecidas e desaparecidos por deslizamento de terra na Colômbia. Será que ele vai preferir me proteger, me acudir ou aquela gente toda que sofre e chora a morte dos seus entes por causa dos tais deslizamentos? Poupe-me dona Augusta. Eu vou é tomar meu Wisk agora. De todo jeito um dia eu vou morrer mesmo...

...

Certo dia surge um folheto na rua. Jogaram em todos os bairros de João Pessoa, cujo título remetia ao solitário e estranho Higino Fonseca de Menezes: "Desculpa Arranjada". A narrativa da conversa fora descrita de forma  original. Até parecia que os suspiros de dona Augusta iriam sair pelas letras impressas pela máquina datilográfica em papel jornal de quinta. Quando Higino soube da notícia pelo carteiro que sempre passava pela sua residência, solicitou-lhe uma cópia. O carteiro de pronto, enfiando a mão dentro da bolsa das correspondências, retirou um maço de folhetos que contavam uma média de trezentas cópias. Ele, sínico e anarquista, enfiou uma interrogativa:

___ "Quer quantos?"

Higino, instantaneamente, perdeu a paciência e dando um bote, conseguiu lhe arrancar umas trinta e uma unidades, e além disso, não perdeu a oportunidade de alarmar a vizinhança:

___ Homem, deixe de ser nojento! Homem não! Cabra safado!
___ Mas o que eu fiz seu Higino?
___ Ainda me pergunta o que fez seu cara de dissimulado e cínico até dizer basta! Suma daqui desgraçado! Suma antes que eu jogue uma chaleira de água quente na sua cara de diabo idiota!...

Dali para frente, seu Higino leu o folheto mais de vinte vezes, e lembrando-me diálogo travado com dona Augusta, disposto de maneira precisa no folheto, imaginou como seria se tivesse deixado levar por aquele rabo de saia, que por sinal contando 44 anos de idade, enquanto ele, aos 58, ainda dava um bom molho. Ficou com aquilo na cabeça. O desgosto de ter lido aquela narrativa não foi maior do que o arrependimento de não ter cedido às cantadas daquela senhora, gentil e apaixonada. Agora era tarde. Contando oitenta e cinco anos de idade, enquanto ela, setenta e um, Higino se deu conta de que a vida  passou, e a única oportunidade que lhe surgira após ter ficado também viúvo na flor da idade, deixou voar, feito andorinha quando quer fugir da chuva. Havia quase seis anos que Higino não tocava em uma gota de Wisk. Resolveu abrir um Chivas 25 anos para quebrar o jejum. O desgosto lhe tomou, e aquele foi o último dia da sua vida em corpo...

"Faleceu às 13h13min após ter tomado 13 doses de Chivas e ter gritado bem auto o nome de 13 obras de destaque de Henry Miller, destacando falas e frases das suas literaturas prediletas e repetindo Trópico de Câncer até dar seu último suspiro...".

No bolso falso esquerdo do seu sobretudo preto, havia um cartão com a sua frase favorita, mas que não era de Henry Miller. A vez foi de Vinícius de Moraes. Solicitava em observação: "Escrevam isso na minha lápide. Este é o meu último pedido".


Fábio de Carvalho [Maranhão] 
02/04/2017, 20h31min - 21h21min - Domingo, Cortês-PE, Escritório de Trabalho [Biblioteca Particular]